São Paulo enfrenta o terceiro dia de crise, com 700 mil sem eletricidade, em meio a disputas políticas e reclamações à Enel
Após reunião na noite de domingo para avaliar desdobramentos do apagão na Grande São Paulo, dirigentes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Reguladora de Serviços Públicos de São Paulo (Arcesp) afirmaram que a Enel, concessionária de energia que atende 24 municípios, disponibilizou um número de funcionários aquém do que ela própria havia prometido para lidar com eventos dessa magnitude.
O presidente da concessionária, Guilherme Alencastre, não deu um prazo para o restabelecimento completo do serviço. Mais de meio milhão de clientes continuam sem energia elétrica. A Enel Distribuição, concessionária de energia que atende 24 municípios do estado, informou que, até às 5h40 desta segunda-feira (14), 537 mil casas e estabelecimentos comerciais permaneciam no escuro.
A crítica de órgãos de controle ao descumprimento do plano de contingência aumenta a pressão sobre a Enel, também alvo de cobranças do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do governo federal. Em entrevista coletiva após a reunião, o diretor da Arcesp, Thiago Veloso, afirmou que a Enel havia se comprometido a empregar 2,5 mil pessoas em “cenário de contingência extrema”, como o desta semana. O plano havia sido apresentado após outro apagão, em 2023.
Esse número ainda não foi alcançado. Nós temos hoje de 1,7 mil a 1,8 mil pessoas. (…) Nos preocupa a capacidade de mobilização neste momento e a velocidade desse restabelecimento do serviço em São Paulo — disse Veloso.
O diretor da agência afirmou ainda que o restabelecimento do serviço por parte da Enel está mais lento do que em outro apagão causado por temporais, no fim de 2023. A concessionária informou que só atingirá nesta segunda-feira o patamar de 2,5 mil trabalhadores, três dias após o apagão.
Na véspera, o governador Tarcísio de Freitas havia cobrado o Ministério de Minas Energia e a Aneel para abrir “imediatamente” o processo de caducidade do contrato da Enel. Neste domingo, o diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa, afirma que está avaliando a evolução da reação da Enel ao evento, e que o processo vai tomar o tempo necessário para que a empresa seja punida, se for o caso de fazê-lo.
Além do apagão, o temporal com forte ventania em São Paulo deixou um rastro de sete mortes e de transtornos em serviços públicos e ao comércio. O impacto acabou transbordando ainda para a campanha eleitoral à prefeitura e gerou trocas de acusações.
Bate-boca nas redes
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) se referiu à Enel como “inimiga do povo” e citou que a concessão é de responsabilidade do Ministério de Minas e Energia e da Aneel. Nunes criticou o Executivo federal por não encerrar a concessão, mesmo com os reiterados problemas vividos e denunciados pela gestão municipal. O prefeito argumentou que a administração municipal tem atuação limitada contra a companhia, a não ser cobrar judicialmente pela melhoria dos serviços.
Em campanha pela reeleição, Nunes adotou a estratégia de tentar se eximir de culpa pelos transtornos, por um lado, mas também de aparecer na linha de frente da tentativa de normalizar os serviços da cidade, por outro. O prefeito cancelou agendas e adotou o colete laranja da Defesa Civil como uniforme no fim de semana.
A fala de Nunes gerou uma reação do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que questionou se as “árvores que caíram em cima das redes de energia também são de responsabilidade do governo federal”. Adversário de Nunes no segundo turno da eleição à prefeitura, Guilherme Boulos (PSOL) também criticou o prefeito por “falta de medidas preventivas” que poderiam atenuar os estragos. Boulos deixou outras atividades de campanha em suspenso neste fim de semana e redirecionou o foco para cobrar a gestão de Nunes pela escala dos problemas deixados pela chuva.
O ministro Alexandre Silveira e o prefeito Ricardo Nunes ainda bateram boca sobre a hipótese de renovação da concessão da Enel. O prefeito acusou o ministro de ter sinalizado com essa possibilidade; Silveira negou e disse já ter cobrado a Aneel para dar andamento ao processo de caducidade, e disse que a agência não atendeu seus requerimentos.
“No dia do apagão, o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, falou em durante um evento com o diretor da Enel, em Roma, na Itália, da possibilidade de renovação dos contratos da Enel no Brasil”, escreveu Nunes.
Silveira não negou o encontro, mas acusou o prefeito de espalhar notícias falsas. “Não houve qualquer discussão sobre a renovação da concessão da Enel. Isso não está na mesa”, ponderou o ministro.
O Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo, que já haviam ingressado com ação civil pública contra a Enel no fim de 2023, alegaram que o processo ficou paralisado após um pedido da Aneel para “intervenção nos autos da ação como assistente” da concessionária. O MP e a Defensoria se opuseram ao pedido. A ação cobra melhorias no serviço e indenizações para os afetados por quedas de energia.
Segundo a Enel, o temporal de sexta-feira chegou a afetar 2,1 milhões de pontos de ligação de eletricidade. Do total de casas que seguiam sem luz até a tarde de domingo, mais da metade ficavam na capital, sobretudo em bairros da Zona Sul de São Paulo.
Mais de meio milhão de clientes continuam sem energia elétrica em São Paulo. A Enel Distribuição, concessionária de energia que atende 24 municípios do estado, informou que, até às 5h40 desta segunda-feira (14), 537 mil casas e estabelecimentos comerciais permaneciam no escuro.
Segundo a concessionária, o trabalho para restaurar completamente o acesso à luz em determinadas áreas “é mais complexo, pois envolve a reconstrução de trechos inteiros da rede”. A empresa afirmou ainda, em comunicado divulgado na tarde de domingo, que “deslocou técnicos do Rio e do Ceará e está recebendo apoio de outros grupos de distribuição” para normalizar os serviços.
Improviso pela vida
Sem luz, a comerciante Luciana Nietto, de 47 anos, moradora de São Bernardo do Campo, teve que improvisar para garantir o funcionamento de aparelhos indispensáveis à sua filha Heloísa, de 18 anos, que foi diagnosticada com Atrofia Muscular Espinhal (AME), uma doença genética rara. Luciana precisou puxar energia do carro, com o auxílio de cinco extensores, e depois contou com a ajuda de um vizinho, que já estava com luz, para fazer uma ligação clandestina para sua casa.
Foi a saída que encontramos. A vida dela depende de energia elétrica. Ela só consegue ficar sem o respirador por cerca de 10 segundos — afirma a vendedora.
Embora a residência seja cadastrada como “cliente vital”, que são aqueles que dependem de equipamentos essenciais à vida e devem ter prioridade no atendimento, a Enel demorou mais de 40 horas para enviar um técnico ao local, segundo Luciana.
Procurada pelo GLOBO para comentar o caso, a Enel disse que “tem priorizado o serviço a hospitais e clientes que dependem de equipamentos elétricos para sobreviver”, e acrescentou ter instalado um gerador de energia para atender a casa de Luciana.
Segundo o governo do estado, a falta de luz também afetou o abastecimento de água em São Paulo, em Cotia e em outros municípios do ABC Paulista, como Santo André e Mauá. Houve problemas no funcionamento de equipamentos que transportam a água para locais mais altos. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), 165 semáforos seguiam fora de operação na capital até a tarde de domingo, a maioria por falta de luz.
Problemas em série
Para além do apagão, o temporal gerou outros transtornos na Grande São Paulo, como pontos de alagamento. Em Cotia, a chuva e as rajadas de vento derrubaram portas e parte da estrutura do teto de um hospital. Um shopping na Zona Sul de São Paulo foi afetado de forma semelhante, e um carro no estacionamento foi atingido por destroços.
As rajadas, segundo a medição da Defesa Civil, chegaram a 107 km/h na noite de sexta-feira e superaram o recorde anterior, do temporal de novembro de 2023, quando os ventos haviam chegado a 103 km/h. Por falta de condições climáticas, o Aeroporto de Congonhas precisou fechar a pista por cerca de 20 minutos na noite de sexta, e duas decolagens foram canceladas.
Já o Corpo de Bombeiros informou ter recebido, até a manhã de domingo, 466 chamados para ocorrências relacionadas a quedas de árvores. As sete mortes registradas desde sexta tiveram relação com desabamentos tanto de troncos e galhos quanto de um muro.
No sábado, um cachorro morreu ao pisar em um fio de alta tensão rompido no bairro Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Os tutores só conseguiram resgatar o corpo do animal no início da tarde de domingo, mais de 24 horas após o incidente. Com a intensidade da descarga elétrica, de acordo com o relato, o animal ficou preso ao fio energizado, o que impossibilitava a retirada.
Para resgatar o corpo do animal, uma das tutoras, Marina Guedes, contou ter tentado falar com a concessionária Enel “dezenas de vezes” para desativar a energia da rua. O atendimento de técnicos só ocorreu na tarde deste domingo.
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