MP-SP abre investigação contra hospital que se recusou a colocar DIU em paciente por seguir ‘diretrizes católicas’
Promotores deram 15 dias para a Sociedade Beneficente São Camilo se manifestar sobre a investigação. O órgão pediu também que a rede esclareça se a recusa a procedimentos contraceptivos se aplica aos pacientes que buscam a rede pelo SUS e aos clientes do plano de saúde São Camilo.
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) abriu um inquérito contra o Hospital São Camilo pela rede se recusar a realizar procedimentos contraceptivos em homens e mulheres por seguir “diretrizes de uma instituição católica”.
O inquérito foi aberto a partir de um pedido da deputada estadual Andréa Werner (PSB). Conforme o g1 publicou, na semana passada, uma unidade do São Camilo se recusou a colocar um dispositivo intrauterino (DIU) em uma paciente por seguir diretrizes “de uma instituição católica”.
“Como deputada estadual e como mulher, recebo com alento a abertura desse inquérito por parte da Promotoria a partir do nosso ofício. Sobretudo porque, quando um hospital particular e um plano de saúde recusam atendimento, na prática, o que eles fazem é mandar aquele(a) paciente para o SUS – o que sobrecarrega o sistema público enquanto o sistema privado tem autonomia para negar procedimentos mesmo quando previstos claramente pela ANS”, afirma a deputada Andréa Werner (PSB).
O caso aconteceu na segunda-feira (23) com a produtora de conteúdo Leonor Macedo, de 41 anos.
Ela procurou a unidade da Pompeia do hospital, na Zona Oeste da capital, para implantar um DIU, quando foi informada pela médica que eles não fazem o procedimento por se tratar de uma instituição religiosa. “Fiquei em choque, imagina, nunca tinha passado pela minha cabeça que em 2024 isso poderia acontecer e que as coisas ainda eram tão atrasadas assim”, afirmou.
O g1 procurou o Hospital São Camilo, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.
Recusa do hospital
A paciente Leonor informou que foi novamente procurada pelo hospital, que disse que não colocam DIU nem fazem vasectomia. Também teriam dito que o DIU, é “quase um aborto de um ser vivo”, e que o procedimento só é feito em casos graves, mas não como método contraceptivo.
De acordo com o MPSP, “a prática noticiada pode afrontar dispositivos constitucionais e legais e, por isso, é necessária a investigação dos fatos pelo Ministério Público. Nos termos do art. 226, § 7º, da Constituição Federal, o planejamento familiar decorre dos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, e o Estado deve proporcionar os recursos educacionais e científicos para o exercício do direito ao planejamento familiar, sem qualquer forma de coerção”.
O órgão argumenta também que a negativa de realização de procedimentos contraceptivos “pode representar ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana e pode acentuar indevidas exclusões sociais, na medida em que não assegura o direito à saúde e ao planejamento familiar”.
Dentre os pedidos, o MPSP deu 15 dias para a Sociedade Beneficente São Camilo se manifestar sobre a investigação. A órgão pediu que a rede esclareça se a recusa a procedimentos contraceptivos é também aos pacientes que buscam a rede pelo SUS e aos clientes do plano de saúde São Camilo.
O dispositivo intrauterino (DIU) é um dos métodos contraceptivos disponíveis de graça no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS), com eficácia superior a 99%.
O Hospital São Camilo foi inaugurado em 1960 por religiosos camilianos que haviam criado, em 1935, a Policlínica São Camilo.
O Brasil é um país laico e, desde janeiro de 1890, é proibida por lei a intervenção da autoridade federal e dos estados em matéria religiosa, consagrando a plena liberdade de cultos.
Mas afinal, uma rede hospitalar pode recusar esse tipo de atendimento por viés religioso?
De acordo com a advogada Juliana Valente, especialista em violência de gênero, segundo o artigo 199 da Constituição Federal, a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, e essas instituições funcionam de forma complementar ao SUS.
Ou seja, as instituições privadas são uma extensão do atendimento público aos pacientes.
Segundo a Lei Orgânica de Saúde, quando existir uma insuficiência dos serviços públicos, ele pode ser disponibilizado pela iniciativa privada.
“Em verdade, entendendo que o estado é laico e a instituição privada de saúde deverá ser complementar ao SUS, seguindo a Constituição, essa determinação é um absurdo”, afirma a advogada.
Ainda de acordo com a lei, os serviços públicos e privados de saúde, sejam ele contratados ou conveniados, dentre seus princípios, devem:
Obedecer à universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
e oferecer igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
Pelo entendimento de Valente, ao se recusar a oferecer um serviço, a instituição pode estar ferindo a lei.
“Se eles são obrigados a complementar o SUS, e o Estado é laico, eles não podem recusar com fundamentação religiosa”, completa.
Mas as interpretações do caso não são unânimes. Conforme o entendimento do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), os hospitais particulares não têm a obrigatoriedade de realizar procedimentos contraceptivos como a implantação de DIU.
“A realização deste procedimento depende do protocolo de cada instituição. Além disso, este é um procedimento que pode ser realizado em consultório médico, de modo que nem todos os planos de saúde cobrem sua inserção e internação em hospitais.”
Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), também entende que o hospital pode se recusar a fazer o procedimento.
“Essa prática é comumente baseada em princípios éticos e morais associados à religião da instituição. É importante notar que, mesmo em locais onde hospitais religiosos podem se recusar a realizar procedimentos contraceptivos, geralmente existem outras opções de saúde disponíveis onde esses serviços podem ser obtidos.”
“Ainda sobre tal tema, em situações que não envolvem risco imediato à vida da paciente, como em emergências, um hospital privado tem a liberdade de aderir a princípios religiosos. Assim, no contexto de tais crenças, a contracepção pode ser vista como contrária à preservação da vida”, completa.
Do ponto de vista do direito do consumidor, o Procon informou que, “sob o aspecto do Código de Defesa do Consumidor, o fornecedor não é obrigado a prestar todo tipo de serviço, a menos que ele integre um plano que ofereça este atendimento para seus conveniados. E isto precisa estar claramente explicado no contrato entre a operadora e o usuário”.
A Bancada Feminista do Psol entrou com uma representação no Ministério Público de São Paulo (MP-SP) contra o hospital.
“O mandato coletivo argumenta que a negativa do Hospital é ilegal, pois infringe a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde, as quais estabelecem que serviços públicos ou privados de saúde devem obedecer à universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência, bem como oferecer igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie”.
O que diz a ANS
Em nota, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou que “a legislação não permite à ANS a regulação dos hospitais”, mas esclarece que as operadoras de planos de saúde são “obrigadas a oferecer todos os procedimentos previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, respeitando-se os casos de Diretrizes de Utilização (DUT), carências e Cobertura Parcial Temporária (CPT), quando houver, de acordo com a segmentação assistencial, área geográfica de abrangência e área de atuação do produto, dentro dos prazos definidos pela ANS”.
Especificamente sobre planejamento familiar, a ANS diz que esses procedimentos têm “cobertura obrigatória pelos planos de saúde, conforme art. 35-c, III da Lei 9656/98 e sua regulamentação encontra-se prevista na Lei 9263/96. Dessa forma, destacamos que estão contemplados no Rol, por exemplo, procedimentos como:
– Cirurgia de esterilização masculina (vasectomia) (conforme regras estabelecidas na DUT nº 12 – anexo II da RN nº 465/2021)
– Cirurgia de esterilização feminina (laqueadura tubária/ laqueadura tubária laparoscópica) (conforme regras estabelecidas na DUT nº 11 – anexo II da RN nº 465/2021)
– Implante de dispositivo/sistema intrauterino (DIU/SIU) hormonal – inclui o dispositivo
– Implante de dispositivo intra-uterino (DIU) não hormonal – inclui o dispositivo
Para garantir a assistência oferecida nos planos contratados, as operadoras devem formar uma rede de prestadores, seja própria ou contratada, compatível com a demanda e com a área de abrangência do plano. Dessa forma, a rede prestadora deve ser capaz de atender à demanda dos beneficiários nos prazos regulamentares, respeitando o que foi contratado, sendo imputada à operadora a responsabilidade por falhas na formação desta rede.
Eventual prática em desacordo por parte da operadora pode ser considerada negativa de atendimento, levando à abertura de processo administrativo sancionador contra a operadora, que poderá, conforme a legislação vigente, resultar na possibilidade de aplicação de multa.
Fonte: G1
Editor-chefe, publicitário, jornalista e especialista em marketing político, com vasta experiência em gestão editorial, desenvolvimento de estratégias de comunicação e campanhas políticas de alto impacto.